quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Lino Brocka sobre Bona

Bona

Filipinas, 1980

Realização: Lino Brocka
Argumento: Cenen Ramones
Imagem: Conrado Balthazar
Música: Max Jocson
Montagem: Augusto Salvador
Intérpretes: Nora Aunor, Phillip Salvador, Rustica Carpio, Venchito Galvez, Nanding Josef, Spanky Manikan, Marissa Delgado, Raquel Montes
Duração: 100 minutos
Produção: NV Productions

O TEMA DO FILME

Bona, uma rapariga de 18 anos, falta à escola e evita todo o trabalho em casa para poder acompanhar as filmagens, Gardo, um actor de segundo plano. Um dia este é atacado por um grupo por ter feito amor com a irmã de um dos membros. Bona ajuda-o a voltar para casa nos bairros pobres e cuida dele até que recobra os sentidos! Volta depois para sua casa onde encontra o seu pai fora de si que lhe bate violentamente. Bona deixa rapidamente a sua família para ir viver com Gardo. Faz-lhe de comer, lava-lhe a roupa, limpa-lhe a casa e vai buscar-lhe água à única bomba disponível. Uma noite, num momento de fraqueza, Gardo faz amor com ela. Bona sente-se então mais feliz mas isso em nada muda a sua relação. Gardo continua a trazer para casa numerosas mulheres que irritam Bona, obrigando-a a esconder o seu amor por ele. Durante este tempo, o pai de  Bona tenta recuperá-la mas morre de uma crise cardíaca. No funeral, o seu irmão põe-na fora de casa. Ela volta para casa de Gardo sofrendo com a perda da sua família. Alguns meses mais tarde, Gardo projecta deixar o país para ir para os Estados Unidos com a sua amiga Katrina. Bona perde a paciência e queima-o no seu banho

A PALAVRA DO AUTOR

Como nasceu a ideia de realizar «Bona»?

Cenen Ramones tinha proposto um argumento para a série de televisão intitulada Mulheres (Babae). A versão original tinha então sido concebida para a actriz Laurice Guillen que foi a primeira a desempenhar o papel; papel de uma estudante liceal sem problemas que vive a sua primeira história de amor com um actor de segundo plano que ela não hesita em seguir. Era mais acentuada a paixão da rapariga do que o aspecto fanático da situação (...)

Como situar o fanatismo no quadro mais amplo das realidades filipinas?

Compara-o e liguei-o ao fanatismo religioso dos fiipinos. Não há uma grande diferença entre uma estrela de cinema e um santo. Quando o filme foi estreado em Manila, as pessoas lamentaram-se de que Nora Aunor (a actriz que representa a protagonista) pudesse amar um segundo plano como Gardo. Mas eu estava então muito menos interessado pela realidade da situação do que pela do fanatismo. Se ela tivesse podido amar um actor com fama semelhante à sua, ela teria sido rodeada por um tal número de admiradores que a sua fama pessoal acabaria por ser diminuída por isso.

Quais são as características dos admiradores do filme «Bona»?

Muitos deles são rejeitados pelas respectivas famílias. Se você tivesse um dia oportunidade de assistir a uma reunião de «fans» de Nora ouvi-los-ia falar do que abandonaram. Algumas deixaram o seu marido, outros o seu trabalho. Tem de se passar por um período de crise para se tornar um dos seus admiradores. Esta etapa é um ritual de reconhecimento, um símbolo para eles.

Certamente que Bona abandonou tudo, mas não queima ela Gardo no fim do filme?

Ela abandonou tudo mas destroi igualmente tudo aquilo em que toca. Quando uma pessoa considera um ser como o seu próprio Deus este apenas permanece como tal na medida em que se corresponde ao seu sonho. Se se afaste dele, o «fan» é então o primeiro a querer destruir o seu antigo ídolo. É o que eu quis sublinhar na cena em que Bona vê Gardo chorar e em que ela realiza que ele tem necessidade dela. Nesse instante se inicia também o imparável que levará à destruição completa das suas relações. Muita gente disse que eu tinha criado um personagem fraco. Penso o contrário; Bona era cheia de recursos; ela faz-lhe de comer, lava-lhe a roupa, limpa-lhe a casa enquanto ele corresponde à imagem que ela faz dele. Ela venera-o como se respeita o Rochedo de Gibraltar. No entanto é este que é fraco, prisioneiro da sua contínua necessidade de atenções 

(Documentação comunicada pela Produção do Filme)

LINO BROCKA

Nasceu a 3 de Abril de 1939 em San José, Nueva Ecija. Cinéfilo desde muito novo foi espectador assíduo de filmes filipinos. Uma crise espiritual na universidade leva-o a converter-se em mormon tendo cuidado dos leprosos de Malakai durante dois anos. De regresso à sua pátria, trabalhou intensamente para o teatro e situa-se com um realismo cada vez maior perante o complexo universo da produção cinematográfica. Quatro dos seus filmes, Tininbang, Insiang, Manila e Jaguar foram galardoados como os melhores filmes nos respectivos anos de produção.

Extraído do catálogo do "Festival Internacional de Cinema Figueira da Foz", 1982

Entrevista com Lino Brocka

Na Europa, especialmente em Portugal, sabemos muito pouco, ou quase nada, sobre o cinema filipino. Pretendia obter informações gerais sobre esse cinema. Quantos filmes são produzidos nas Filipinas anualmente e qual o tipo de filmes?

Produzimos aproximadamente 300 filmes por ano, para além de importar 200 a 300 filmes estrangeiros. Quando falo em filmes estrangeiros, refiro-me fundamentalmente a filmes de Hollywood e filmes sobre o Kung Fu chinês e Karaté. Os filmes locais são normalmente de tipo escapista, para entretenimento. São filmes com bastante acção, a maior parte dos quais com «gangsters» e tendo por base factos e histórias que se supõem ter acontecido no passado. Por isso, há muitos filmes filipinos, cujo título integra o nome do famoso personagem envolvido. Há também outro tipo — is filmes sexualmente ousados. Quando emprego o termo «ousados», essa palavra não tem necessariamente o mesmo conteúdo que tem na Europa. Trata-se, na maioria dos casos, de filmes simplesmente excitantes. Dificilmente se vê alguma coisa, a não ser cenas de beijos prolongados. Não há grandes cenas de nudez, uma vez que isso não é permitido. Portanto, as cenas limitam-se a ser excitantes. Por exemplo, vê-se a actriz em camisa de noite. Entretanto, ela molha-se, o que dá para se ver o bico do peito. As actrizes são normalmente muito jovens, de idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos. Também elas são classificadas de ousadas. Estes filmes capitalizam a utilização da extrema juventude das actrizes. Temos também a nossa quota de comédias que podem ir ao extremo. Nem sempre são verdadeiramente humorísticas, e às vezes ultrapassam mesmo a comédia burlesca como, por exemplo, quando capitalizam defeitos pessoais. A maior parte dos nossos comediantes têm algum defeito, se é que a isso se pode chamar defeito. São, por exemplo, calvos ou desdentados, feios ou vesgos. 
São estes os filmes que normalmente se fazem nas Filipinas. Existem também os dramas — os melodramas, baseados habitualmente em notícias e comentários a propósito da vida dos actores. Há muitas revistas sobre a vida dos artistas que dão informações sobre quem dorme com quem. São revistas tipo tabloide, que na realidade não expõem, mas fazem alusões a vida privada das estrelas de cinema. Esses actores são depois contratados para fazer filmes cuja popularidade se deve parcialmente ao facto da história poder ter algo a ver com a realidade. Por exemplo, uma popular actriz que se separa do marido, que é igualmente popular e está agora a sair com outro homem. Essa situação daria para se fazer um filme em que esses artistas contracenassem. Outra situação é a do actor que está envolvido com duas actrizes — a sua ex-mulher e a sua nova ligação. Daí pode nascer a ideia dum filme sobre o triângulo amoroso em que os protagonistas sejam os mesmos da vida real. É este o tipo de dramas amorosos que fazemos.

O cinema é verdadeiramente popular nas Filipinas, mesmo com a televisão?

Bem, para já não é a modalidade mais barata de entretenimento. Falando em termos comparativos, creio que temos talvez os bilhetes mais baratos, muito embora tenhamos também uma das mais altas taxas de impostos cobrados pelo governo sobre os filmes locais.

Já vimos filmes realizados por si, por Mike de Leon e por outros realizadores. Se é que nesta conversa, vos posso classificar como um grupo, qual a vossa posição face a esse cinema altamente comercial?

Bom, eu sou um dos realizadores mais populares embora os meus filmes não sejam sucessos extraordinários de bilheteira, como por exemplo «Os Salteadores da Arca Perdida». Mas sou um dos realizadores com maior sucesso de bilheteira, porque faço filmes mais baratos em comparação com os outros realizadores. Sou rápido e eles gostam do meu trabalho, por acharem que é um trabalho limpo. Têm dito que até o meu filme mais comercial é melhor, em termos de qualidade, do que os outros melhores filmes dos outros. Não sei bem como avaliar isto, mas o facto é que recebo ofertas de tantos produtores que o meu único problema é a falta de tempo para corresponder a essas ofertas.

Portanto, você tem alguns filmes que podem ser considerados comerciais e outros que não o são...

Com certeza! Gosto de pensar que é assim! Costumo utilizar uma palavra para classificar alguns dos meus filmes — são filmes de transigência. No sentido em que se toma a palavra comercial, eles são filmes comerciais e pensaria duas vezes antes de os mostrar a algumas pessoas. Porque sei muito bem que, quando os fiz vários factores como a concepção, o tema, a maneira de filmar e o elenco foram todos determinados em função dum mercado específico. Mas é também com plena consciência que embarco num projecto mais ambicioso. Não é só uma questão de concepção, mas há também uma certa energia que se pressente, que eu sinto, quando sei que estou para iniciar um filme importante ou um pouco mais ambicioso do que os filmes, chamados comerciais, que tenho feito. Sei também que vou demorar mais tempo a fazê-los e que é com satisfação que iniciarei a sua rodagem.

Não é propriamente minha intenção procurar uma explicação para estas duas qualidades de filmes que faz, mas creio que se trata do resultado duma situação de censura. Provavelmente, se você pudesse realizar só os filmes de que gosta e eles tivessem audiência suficiente, você nunca faria os tais comerciais...

É certo que a censura tem muito a ver com isso. De facto, penso que ela é um dos obstáculos mais fortes ao desenvolvimento da indústria cinematográfica local. Mas não é só uma questão de censura. É que fazer só o tipo de filmes que gosto seria quase suicida sob ponto de vista da bilheteira. Em outras palavras, tenho de ter a conta a bilheteira e os espectadores. São espectadores condicionados é certo, mas como quaisquer outros exigem uma forma de entretenimento que lhes permita um escape e é indispensável entender-se isso. É uma audiência profundamente influenciada pelos filmes de Hollywood, como qualquer outra, à procura de excitação barata. Uma perseguição de carro, por exemplo, proporciona-lhes a tal oportunidade de escape e é isso que ela deseja. As pessoas gostam de ir ao cinema para se divertir e não para pensar nos seus problemas. Como vê, não é uma questão de censura. Mesmo que me fosse dada a oportunidade de fazer um dos tais filmes ambiciosos, teria de ponderar cuidadosamente antes de o iniciar. Não se trata apenas de realizá-lo; há também a ter em conta a sua rentabilidade. É a forma como ele vende que, na análise final, vai revelar a sua aceitação. Por isso, estou a trilhar o caminho muito lentamente. É muito difícil. Ao contrário daquilo que muita gente julga, nunca início o projecto sem ter a certeza da sua rentabilidade. Poderá não dar para ganhar muito dinheiro, mas dará certamente para reaver o capital empatado, o que me fornecerá a margem necessária para outras iniciativas. Nunca faço um filme sem ser na base do que vou rehaver o investimento inicial. É esta a linguagem que os produtores compreendem. Logo na altura em que realizei o meu primeiro filme, já sabia que tinha de fazer o filme do produtor e não o meu próprio filme. Para além disso, desde o momento que quis fazer o meu primeiro filme, soube sempre que teria de criar o tipo de espectador capaz de o apreciar. Em outras palavras, essa audiência ainda não está preparada; tenho de a procurar e de a incentivar. É por aí que o problema passa. Sei que ela está aí; é uma questão de encontrar exactamente aquilo que a irá estimular. É necessário desenvolvê-la para que seja possível, lentamente, fazer o tipo de filmes de que gosto. É por isso que muito embora tenha obtido êxito em criar uma certa qualidade de consciência, há ainda um longo caminho a percorrer. Para lhe falar com franqueza, por todas estas razões, penso que este tipo de filmes não se irá fazer durante a minha geração. Por isso, de momento, alterei a minha estratégia e até os meus objetivos. No começo, pensava que poderia fazer o tipo de filmes que gosto dentro dum período de quatro ou cinco anos. Pensava que durante esse período poderia criar o tipo de expectador adequado. Já não penso assim, hoje! Presentemente, estou mais interessado em treinar. Considero-me um pioneiro (sem querer parecer João Baptista). Como iniciei a minha carreira antes de Mike e dos outros, creio que, em certa medida, posso-lhes abrir as portas. No meu tipo de trabalho, uma vez que também estou envolvido com o teatro, uma parte desse trabalho prende-se com a preparação dos outros (actores, directores,  argumentistas, etc.). Isto pode soar como algo de grande e pomposo, mas temos estado a fazê-lo lentamente e, em certa medida, temos obtido bastante êxito. Voltando à questão, neste momento penso que é inútil e até fútil fazer esse tal tipo de filme de que tanto temos falado. A única forma possível de o fazer seria tendo em vista um mercado internacional ou uma audiência internacional. Seria uma maneira de inverter a situação. Em vez de o fazer para o mercado local, fá-lo-ia para um Festival ou uma audiência internacional. No princípio, esta ideia perturbava-me. A minha experiência em Cannes foi perturbadora. Nos meus encontros e conversas com realizadores e cineastas e quando via os seus filmes, eu apreciava este tipo de cinema. Mas depois apercebi-me de que a fazê-lo, teria de ser para uma audiência internacional em primeira mão. No início, resisti mentalmente a esta ideia. Conscientemente não a queria pôr em prática. Sendo filipino não queria fazer filmes tendo em mente uma audiência internacional. Podia ser acusado duma forma errada de nacionalismo, mas era assim que pensava.
Ainda há pouco tempo, no Festival Internacional de Manila, Michael Levi acenou-me com a ideia de abandonar as Filipinas e fazer um filme estrangeiro. Não compreendi a ideia e disse-lhe que se ele queria um filme americano, devia convidar um americano para fazê-lo. O exemplo que ele me apontou foi o de Louis Malle, no caso de «Atlantic City». Eu era capaz de conseguir, mas subjacente a tudo isto está a ideia que tenho sobre o que é ser realizador. Possivelmente terei de reorganizar o meu esquema mental. Creio que o meu problema é a falta de percepção do negócio, muito embora esteja agora a aprender que às vezes vale a pena fazer um filme porque ele vai ser um bom negócio. Mas acho que é muito triste fazer-se filmes com este objectivo. Sei que os vou fazer, por acaso até vou fazer um brevemente, mas mesmo assim não é a nível puramente do negócio. Trata-se dum filme comercial, sobre Karaté (até hoje nunca fiz nenhum!) mas vou fazê-lo porque conta com a participação duma actriz local como Hilda Koronel. Em outras palavras, as minhas razões são, uma vez mais, puramente pessoais. É porque se trata do lançamento duma actriz local no mercado internacional de filmes comerciais e a única maneira de fazê-lo é através dum filme como este que poderia competir com outros do mesmo nível. Não queria classificá-los de filmes de exploração mas acho que é algo parecido. Há um produtor filipino que os alcunhou de filmes Hamburger —  creio que é o equivalente aos Spaghetti Westerns. Eu vou fazê-lo, mas como já referi, por razões pessoais. Investi muito nesta actriz que eles viram e de quem gostaram. Pediram-me para fazer este filme e muito embora possa parecer estúpido, a pessoa que me fez esse pedido parece ser um bom homem. Gostei dele; dei-lhe a resposta em cinco minutos e disse-lhe que fazia o filme porque ele me parecia um bom homem.
Se calhar, esta é uma das minhas fraquezas — sou levado com facilidade. O produtor achava que era necessário que o filme significasse algo para mim, porque ele queria um filme que, apesar de comercial, tivesse um certo conteúdo. Para mim, isso significa bastante. Creio que há um certo risco em escolher uma actriz local para fazer este «filme hamburger» ou... chamem-lhe lá o que quiserem. E qualquer pessoa que está pronta para correr este risco, bom... eu junto-me a ela (sem querer parecer magnânimo!!). São normalmente os bons que correm riscos e acaba por se gerar uma reacção em cadeia. Após ter saído das Filipinas fui a França, depois a Nantes e Benalmádena e encontrei várias pessoas que correm riscos. Por exemplo, a apresentação daqueles filmes chicanos é algo de corajoso. Num Festival, está-se à espera que sejam apresentados filmes mais populares como «A amante do tenente francês» mas, em vez disso, aparecem os filmes chicanos. Esta posição requer coragem e é necessário apoiar os que a têm. Modéstia à parte penso que também posso contribuir. Se por exemplo, eu contactar com um realizador como Treviño, realizador chicano, de Los Angeles presente aqui em Benalmádena e falar dele no meu país, creio que se irá gerar como uma conspiração. Outro exemplo: num filme de terror como «A Semente do Diabo», há a indicação de alguém que está a fazer algo de bom. Posso fazer maus filmes, isto é, filmes comerciais, mas tenh a consciência de que também sou capaz de fazer filmes bons.

A vossa produção é toda privada, ou existe nas Filipinas algo que se possa assemelhar ao National Endowment Fund no E.U.A.?

Todas as produções são privadas. Agora existe o Centro Nacional de Produções de Media, uma agência estatal que fez um filme histórico. Eles não atribuíram nenhum subsídio mas foram eles que o produziram. Contrataram-me a mim e a outros realizadores. Mas o Centro tem as suas próprias concepções: fazem filmes de propaganda. Isso torna a situação um pouco delicada e controversa. Tenho a certeza de que não me seria concedido qualquer subsídio se eu quisesse fazer um filme como o de Treviño. Porque é que leles iriam dar dinheiro do governo e do establishment para eu fazer um filme contra o establishment? Ultimamente, o governo criou um fundo para o cinema. Este fundo, constituído por cinquenta milhões de pesos, é para conceder empréstimos a certos projectos. Há um comité de avaliação e há determinadas orientações que têm de ser seguidas. Creio que isso não irá contribuir para o desenvolvimento da indústria de filmes, mas sim para a realização de filmes para manter o statusquo. No que me concerne, não quero ter nada a ver com isso. Pouco antes de eu sair, o Presidente das Filipinas publicou regulamentação sobre o Cinema Experimental nas Filipinas. A sua filha ficou encarregada do projecto que me parece demasiado bom para ser verdade. Uma das especificadades é a apresentação de filmes-estrangeiros no recentemente construído centro de cinema, sem terem de passar pela censura. Mas o projecto tem ideias de avançar ainda mais longe e subsidiar na íntegra alguns filmes do cinema experimental. Para já, houve um concurso para os projectos que irão ser subsidiados pelo fundão e umas orientações estabelecidas (e eu estou à vontade para falar nelas, uma vez que pertenço a essa Comissão) é a inexistência da censura. Qualquer projecto pode ser submetido à apreciação. Isto é bom; é até demasiado bom para ser verdade.

Agora para falar especificamente dos seus filmes que já vimos na Europa. Para mim, eles têm três constantes fundamentais. A primeira é a utilização permanente de elementos melodramáticos, às vezes em conjunto com fortes reacções contra o poder e a opressão. A segunda é a presença da mulher em todo o lado, sempre doce e obediente. A terceira é a religião. Há uma grande interação entre estas três linhas. Isto não é propriamente uma pergunta... mas creio que você certamente alguns comentários a fazer

No que se refere ao melodrama, é verdade! Sou conhecido pelos meus filmes dramáticos, causadores de lágrimas como são geralmente classificados. Aliás, há várias pessoas que acham que eu não sou capaz de fazer filmes acção, muito embora pensem que eu faço bons melodramas. A única explicação que posso avançar é que o melodrama é a linguagem da audiência. Penso que isso é algo que partilhamos com alguns dos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, do 3.° mundo. O melodrama acontece na índia, na China ou em Hong-Kong. Não sei como explicar isto sem entrar num estudo sociológico da audiência. A verdade é que «Gente Vulgar» ganhou óscares e «Love Story» foi um grande sucesso, pelo que se depreende que o melodrama não é um fenómeno exclusivo dos países subdesenvolvidos. A única diferença é que nos outros, isso é feito de forma mais sofisticada, mas de qualquer maneira não deixa de ser puro melodrama. Talvez que isso faça parte da cultura dos povos que têm problemas de desemprego e cujo índice de alfabetização é baixo.
Para falar nas personagens femininas dos meus filmes... Nunca me tinha apercebido disto até estrangeiros me apontarem essa particularidade após terem vistos os meus filmes. Provavelmente só se repara nas mulheres quando eles (os filmes) são vistos no conjunto, mas enquanto o fiz individualmente, nunca me apercebi disso. 
A explicação sociológica seria talvez dizer-se que a nossa sociedade é mutio matriarcal. Outra razão é o facto de, nas Filipinas, termos melhores actrizes do que actores. Quando filmo dramas, a maior parte das ofertas que faço é às mulheres. Quando chega aos protagonistas masculinos, só há três ou quatro que se especializam em filmes de acção, desempenhando normalmente papéis de gangsters, cowboys, praticantes de Karaté ou são duplos. E uma vez que eu não sou bom neste tipo de filmes, a maioria das propostas que me fazem é de filmes orientados para a mulher.
Muitos dos realizadores filipinos estudaram os filmes de Joan Crawford e Mildred Breis e já se vê isso transplantado para tempos mais modernos. Houve aquela determinada época em Hollywood em que a maior parte dos filmes eram dirigidos ao público feminino, porque era o ponto de vista dos produtores de que era a dona de casa que gostava de chorar no cinema, etc. Como realizador que sou contratado pelos produtores, não posso argumentar. Por exemplo, eles podem achar que eu devo fazer um filme com Vilma Santos, uma das nossas maiores artistas, em que ela é violada e depois entra num esquema de vingança! É uma espécie de formula como acontece em Hollywood, que consegue fazer dinheiro. A maior parte das histórias são concebidas e desenvolvidas tendo em vista a actriz que vai desempenhar o papel e algumas dessas actrizes são boas!

Quanto à religião, tenho uma pergunta mais concreta em relação aos seus filmes que já vi. Por exemplo, em Tinimbang a religião existe permanentemente e faz parte do Background da personagem, mais do que em «Bona», onde a religião só aparece na primeira sequência mas sob um ponto de vista mais crítico, uma vez que aparece ligada ao comportamento das pessoas em vários locais como na rua e na Igreja. Concorda em que houve um progresso no sentido que atribui à religião?

Não, isso acontece apenas por acaso e não foi intencional. Esses dois filmes foram feitos por razões diferentes. Em Tinimbang há uma tentativa clara de deixar uma mensagem. Era o primeiro filme da nossa companhia. É como um primeiro romance, porque há nele impressões da minha infância, passada naquela pequena cidade onde eu nasci, que me marcara. Alguns personagens, como por exemplo o maluquinho da aldeia, existiram na realidade. Eu era um daqueles moços que perseguia o maluquinho. Ele perturbava-me, mas eu nunca consegui perceber porquê. A cena do funeral também faz parte das minhas recordações de infância. Eu achava tudo aquilo muito engraçado e a minha mãe batia-me por isso. Quando eu era miúdo, não havia grandes túmulos. As pessoas eram sepultadas numa cova e habia sempre as pessoas de família que choravam e pediam para deixarem ir com o morto. Eu perguntava-me a mim próprio o que é que aconteceria se os outros lhes fizessem a vontade. Toda aquela cena metia-me uma imensa vontade de rir e, provavelmente, a razão porque eu ainda hoje me recordo disso é por causa das tareias que a minha mãe me dava. A igreja também uma recordação de infância.
Nas pequenas cidades dos países católicos, creio que a religião é mais de boca e à medida que fui crescendo, aprendi a questionar a religião cada vez mais. Quando era miúdo, ninguém se dignava dar resposta às minhas perguntas. Limitavam-se a invocar o mistério; isso para mim era dramático e eu rebelava-me contra isso. Este filme foi feito quatro anos depois de eu ter feito o meu primeiro filme. No entanto já tinha feito mais nove filmes e a única razão porque pude azer este é porque nós éramos os produtores e isto alterava a situação por completo. Desta vez, estava em condições de fazer um filme que gostássemos de fazer... um bom filme comercial, é assim que o vejo. Houve quem dissesse que eu devia revolucionar toda a indústria de filmes e eu nunca me cansei de corrigir essa ideia. Eu só queria fazer bons filmes comerciais!

Gostaria de dizer algo mais sobre a relação entre a religião e os seus filmes

Gosto de pensar que faço filmes cristãos. A comunidade católica das Filipinas tem-me galardoado com vários prêmios, porque acha que eu faço filmes religiosos, em termos dos valores retratados nos filmes. Tenho de admitir que sempre tive consciência desses valores e creio que estava morto por comentá-los. Não só isso. Queria também fixar aquele momento exacto do processo de crescimento, em que o rapaz está no limiar da sua vida adulta tentando escolher o caminho que vai seguir.
Não posso ignorar esses valores porque tenho perfeita consciência deles. Sou assim como pessoa e gosto sempre de entender claramente qual a perspectiva e o contexto das experiências que faço. Nos meus filmes acontece o mesmo com a religião. Em «Bona» limitei-me a utilizar a religião só como um começo, porque não estava interessado no fanatismo religioso como fenómeno, mas estava mais interessado no fanatismo que é uma constante na personalidade dela.
O fanatismo religioso nas Filipinas impressiona-me muito e é por isso que os meus filmes falam disso. Creio que é um assunto que merece uma análise mais profunda mas cabe ao espectador fazê-la.
Bona é uma análise do carácter da rapariga e é muito importante situá-la no meio social correcto. Dizem por vezes que eu ataco a realidade social. É um assunto um pouco delicado para conversar mas é um facto que não se pode fugir dela. Há outros realizadores que dirão que o cinema deve ser basicamente para divertimento. Concordo com isso mas creio que me defino quando digo que, para mim, o cinema no terceiro mundo, isto é, nos países que têm problemas políticos, económicos, religiosos e sociais e problemas de censura, deve ter um papel diferente. Não só para divertir mas também para servir de espelho de reflexão, mas também para confrontar as pessoas com verdades — é isso que o cinema deve ser no terceiro mundo.

A minha útilma pergunta vem nessa linha. Todos os seus filmes, pelo menos os que eu vi, retratam situações caracterizadas por uma extrema dureza social e económica nos bairros de lata. E, apesar disso, as pessoas tentam sobreviver. Em «Bona» por exemplo, lembro-me da cena em que a rapariga luta com a segunda mulher de Gardo. Quando esta consegue impôr a sua vontade, há o momento em que, de repente, Bona muda de atitude e revolta-se. Nos outros filmes acontece algo de parecido. Nos últimos momentos a mulher que durante todo o filme foi obediente, revolta-se e proclama a sua independência. Parece-me que você utiliza um ceto tipo de confronto nestas cenas. Dum lado as pessoas e doutro as circunstâncias opressivas como os bairros de lata em «plongé». Faz isso conscientemente?

Claro! Até já houve entidades oficiais que descobriram isso. É claro que isso é consciente. Tanto pode acontecer no caso dum homem como duma mulher. Por exemplo, no caso de Maynila. Ele é muito obediente, aceita todas as ordens e pode ser explorado. Pode ser encostado à parede e podem-lhe tirar o seu dinheiro. Mas no final ele persegue esta moça e este sonho. Só consigo explicar isso em termos do carácter de Maynila. Em Bona as coisas passam-se a outro nível, mais psicológico. O filipino assemelha-se ao búfalo de água que é o símbolo dos naturais das Filipinas. É um animal a quem se pode fazer tudo, mas se o enfurecer ele correrá atrás de si, como um touro. Penso que os filipinos são assim. É um povo encantador e cheio de paciência. A prova disso é a dominação estrangeira e a maneira como fomos colonizados durante séculos. Num certo sentido a personagem de Maynila ilustra esta opinião. O que eu queria deixar bem claro é que ele suporta tudo até ao momento em que lhe tiraram algo que para ele era extremamente valioso —  a sua namorada. Então ele endoidece e é capaz de matar. São extremos.
Há um ditado filipino que diz que até os cães se transformam. À primeira vez que você lhes der um pontapé eles olharão para si. À segunda, começam a querer a razão e possivelmente rosnarão. À terceira, começam a ficar furiosos. À quarta... tenha cuidado! Em outras palavras, a paciência é muito grande mas é mau quando ela se esgota, porque então Maynila poderá matar. Nós estamos sob a lei marcial. Os filipinos poderão suportar isto durante muito tempo mas podem chegar a um ponto em que não aguentam mais. Como realizador acho isso interessante porque me proporciona a hiótese de estudar várias facetas e nuances do comportamento humano.

Se quiser falar de filmes políticos... temos muito que conversar... Para mim, existe uma diferença entre filmes políticos e filmes demagógicos. Você apresenta esta imensa paciência como um valor individual e não colectivo. Para mim o seu ponto de vista é muito importante

O cinema para mim são as emoções e é necessário por vezes arrancá-las. É quase como um braço que sai do rio para as agarrar e é necessário energia para fazer isso a uma audiência sem forçar.
Penso que os filmes que são mais bem aceitos têm essa capacidade. Em outras palavras há dois níveis. Existe um macros nível para se chegar a ele tem de se atravessar o outro nível mais pessoal, mais individual. Não se pode esperar que uma audiência se identifique com as estatísticas e os elementos de análise de estudos sociológicos — isso é o que faz um documentário. Por exemplo, num documentário sobre o extermínio dos judeus, vê-se centenas ou milhares de corpos que são trucidades e vê-se inclusivamente o que foi feito com os seus dentes... Em outras palavras, obtêm-se elementos informativos que muito nos impressionam. Mas os documentários enchem-nos de estatísticas e de números e os números não envolvem pessoas; é como se estívessemos a ler o Financial Times.
Não é esse o objetivo do cinema. Na minha opinião, esse objectivo traduz-se na observação daquilo que há dentro de cada um de nós e isso só é bem feito, por exemplo no caso do extermínio dos judeus em filmes como O Diário de Anne Frank em que o papel principal é desempenhado por Millie Perkins.
Estou a pensar também noutra peça de televisão com Vanessa Redgrave em que a força do filme era dada pela justaposição de Vaneassa que, como componente duma orquestra, tinha a obrigação de criar beleza sem se deixar envolver pelos gritos das mulheres e das crianças em vias de serem exterminadas. É essa a beleza do cinema. Tem de haver uma relação entre as pessoas.
Pessoalmente, não me consigo relacionar com números. Por exemplo, um documentário de actualidades pode impressionar, mas se as notícias forem transportadas para o nível dum filme de ficção e esse filme contar com um bom argumento e uma boa realização, torna-se mais real do que mil documentários. Isso porque num filme de ficção vê-se o homem sofrendo atormentado, ao contrário do que acontece num documentário em que se vê as imagens mas nunca se conhece o homem. E a maneira de obrigar os espectadores a envolverem-se é dando-lhes a possbilidade de conhecerem esse homem. Num documentário esse envolvimento é limitado; não se chora quandose assiste a um documentário, mas isso pode acontecer num filme de ficção que nos expõe a emoções e fala-nos ao coração. Acontece, por exemplo, num filme mais que comercial como Fuga para a Vitória em que a manipulação é evidente.
Que fique bem claro que não tenho nada contra os documentários, mas acho que por melhor que eles sejam, nunca têm o mesmo impacto dos filmes de ficção.

(Entrevista recolhida por José Vieira Marques, no Festival de Banalmádena, Março de 1982)

Extraído do catálogo do "Festival Internacional de Cinema Figueira da Foz", 1982

quarta-feira, 13 de setembro de 2023


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­ Le «cinéma» n'a pas cessé de dire qu'un «spectateur» n'est jamais trop grand pour rêver.

­ On cesse de rêver à quel âge ?

­ Entre 1955 et 1959.

­ Ce n'est pas un âge. Tu rêves depuis quand, toi ?

­ Depuis 1875.

­ Tu fais plus jeune.

­ C'est gentil. Mais j'ai l'âge des lanternes magiques et des tours de magie, toutes ces expériences de précinéma, qui sont d'abord du rêve, avant d'être du «cinéma». Un seul cinéaste, grand collectionneur d'appareils optiques primitifs, s'est occupé de ça, Werner Nekes. Stephen Dwoskin aussi, à sa manière. Des génies de l'underground, si tu veux.

­ Je ne veux rien. Je ne connais même pas leurs noms.

­ Quand on fera danser les couillons, comme disait Marcel, tu ne seras pas à l'orchestre.

­ Quel Marcel ?

­ Pagnol.

­ J'ai décroché depuis longtemps. Tes derniers lecteurs aussi.

­ M'en fous. Je vais l'arrêter, cette chronique. Marre de ce simulacre de cinéma qui a pris la place de «l'autre». Marre de ces simulacres de spectateurs qui ont pris la place des «autres».

­ Et Blake Edwards ?

­ Une énigme. Un grand cinéaste. La télé, le cinéma, il a tout fait. Je te raconterais ça dans une autre vie, si tu veux.

Louis Skorecki, Libération, 2004

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Nekes, um cineasta a ser redescoberto.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

"…like listening to a piano player tickling a few last chords on the ivories in the wee hours of the morning" (VI)

"Pourquoi filmez vous ?" Jacques Rozier

JACQUES ROZIER

Ce cinéaste singulier, né en 1926, n'a réalisé que quatre films, en vingt-cinq ans. Pourtant, de grands moments de grâce et de cinéma illuminent chacun d'eux, du premier, Adieu Philippine (1962), au dernier et insolite Maine Ocean (1986).

La question a deux sens : 

1. Pourquoi faites-vous du cinéma ?
2. Quelles circonstances (réfléchies ?/ fortuites ?) vous ont amené à faire du cinéma ?) 

Puisqu'il y a deux questions, il y a deux types de réponses. Et on peut toujours faire semblant de répondre à la seconde pour ne pas répondre à la première. Mais je me réjouis méchamment à l'avance des réponses du premier type : je ne sais rien faire d'autre, je ne saurais m'en passer, c'est une nécessité intérieure, il n'y a pas de réponse à cette question, je me pose parfois la question, je me pose toujours la question et ne sais toujours pas. 

Il y a aussi les réponses de type désinvolte : Ça me plaît de... Ça m'amuse de ... Ça me permet de ...

2. La scène se passe sur un quai de la gare de La Ciotat en 1891 : un homme derrière une étrange boîte fixée sur un trépied tourne une manivelle sur le côté de la boite. Un train de voyageurs entre en gare. 

— « Monsieur Lumière, pourquoi filmez-vous ? »
— ...
— « S'il vous plaît, répondez ! »
— « Je n'ai pas le temps de vous répondre, occupé que je suis à tourner la manivelle ! »
— « Monsieur Lumière, répondez, nos lecteurs veulent savoir ... »
— « Eh bien... J'ai inventé cet appareil qui permet de prendre des vues animées, il faut bien qu'il serve à quelque chose.  »


J'ai l'audace de suggérer cette réponse du premier des cinéastes, au cas où on lui aurait posé cette fameuse question. C'est une simple hypothèse, et effrontée. Et pourtant je n'arrive pas à imaginer Louis Lumière répondre : 
— « Je ne sais rien faire d'autre, je ne saurais m'en passer... C'est une nécessité intérieure… Il n'y a pas de réponse à cette question... Etc. »

En tant qu'un des milliers d'arrières-petit-fils de Louis Lumière, j'ose affirmer qu'il devait aimer s'asseoir dans une salle de projection pour voir les rushes. Ce qui est un plaisir inexplicable. Tous les plaisirs ne le sont-ils pas d'ailleurs ? 

3. A propos de plaisir, en voici un autre. Et aussi une autre réponse : je filme pour l'ineffable plaisir d'avoir l'occasion de répondre à ce genre de question.

« Pourquoi filmez-vous ? »Libération, Mai 1987